terça-feira, 28 de junho de 2016

ATÉ O COMEÇO DO SÉCULO PASSADO, BUGREIROS ERAM PAGOS PELO GOVERNO E POR EMPRESAS DE COLONIZAÇÃO PARA CAPTURAR E, EM MUITOS CASOS, MATAR AQUELES QUE ERAM CONSIDERADOS UMA “AMEAÇA À CIVILIZAÇÃO”: OS INDÍGENAS, PRINCIPALMENTE OS XOCLENGUES ENCONTRADOS NO ALTO VALE DO ITAJAÍ


TEXTO | CAROL MACÁRIO
caroline.macario@diariocatarinense.com.br


“O corpo é que nem uma bananeira, corta macio.”
Depoimento do ex-bugreiro Ireno Pinheiro
ao antropólogo Silvio Coelho dos Santos em 1972

Antes de deitar, os índios xoklengues penduravam as armas de caça e guerra nos galhos das árvores. Deitavam no chão, protegidos apenas por uma cobertura de folhas nas noites de chuva. Prestes a amanhecer, entravam em sono mais profundo. Era nessa hora que os bugreiros atacavam. De tocaia na mata, grupos de oito a 15 homens cercavam o acampamento. Primeiro cortavam os arcos para impedir reação. Disparavam então tiros de escopeta, para causar pânico, e o resto do serviço era feito no fio do facão: rasgavam a carne de homens e mulheres com navalhas afiadas, na barriga, nas costas, na garganta. Crianças eram jogadas para o alto para que caíssem na ponta do facão. As orelhas eram cortadas. Cada par tinha um preço, mas a orelha esquerda era a que valia para comprovar a eficiência da caçada e não deixar dúvidas da quantidade de bugres abatidos.
Em nome do progresso, o povo Laklanõ-Xokleng por pouco não foi exterminado em Santa Catarina. Até 1914, os indígenas eram alvo de caçadas estimuladas e bem pagas pelo governo e empresas privadas de colonização por serem considerados uma “ameaça à civilização”.
Crianças e mulheres poupadas da chacina eram levadas para os centros urbanos. Blumenau foi um dos maiores palcos desse circo de horrores. Na colônia, os bugreiros desfrutavam de prestígio e apoio da sociedade amedrontada pelos “silvícolas”. O caso parece pertencer a um passado remoto, mas até 100 anos atrás a matança era legalizada no Brasil.
Pelo menos 4 mil anos antes da chegada dos primeiros imigrantes europeus ao Brasil, em 1824, os Laklanõ-Xokleng – denominação popularizada pelo etnólogo e antropólogo Silvio Coelho dos Santos (1938-2008), principal pesquisador da etnia – já ocupavam o território que vai de Porto Alegre a Paranaguá (PR). Conhecidos também como botocudos por usarem um enfeite no lábio inferior, eles perambulavam pela região do Vale do Itajaí e Serra Geral e a rota variava de acordo com as necessidades alimentares.
A disputa pelo território já era travada entre os próprios subgrupos xoklengues e era secular entre os guaranis e caingangues. Mas a chegada dos não índios mudou para sempre a situação. Acossados pela transformação do território, passaram a atacar os colonos. O contra-ataque foi sangrento: “Bugreiro, ou, mais explicitamente, caçador de índios, foi assim uma profissão criada e necessária ao capitalismo em expansão nesta parte da América”, escreveu Coe­lho dos Santos no livro Índios e Brancos no Sul do Brasil (1988).
A história desse genocídio mobilizou a comunidade científica internacional, envergonhou o Brasil aos olhos do mundo e resultou na primeira demarcação do país, a Terra Indígena Ibirama, há exatos 90 anos.

Violência autorizada pelo governo

Já na Carta Régia de 1808, Dom João VI afirmava que a guerra aos indígenas estava declarada e quem atrapalhasse a civilização deveria ser combatido.
-Com a Lei de Terras de 1850 a situação indígena se agravou, porque tornou devoluta toda a terra que não tivesse escritura – conta o historiador Rafael Casanova Hoerhann.
A Lei de Terras abriu as portas para os imigrantes que chegavam aos milhares a Santa Catarina. São Pedro de Alcântara recebeu a primeira leva de alemães em 1829. A partir de 1850 o número aumentou. A colônia Blumenau era chamada Hamônia e ocupava toda a área onde hoje é o Vale do Itajaí. Foi a região que recebeu o maior número de imigrantes no Estado.

-As empresas colonizadoras preparavam o terreno para a inserção do colono na região. Eram organizações privadas estrangeiras, que vinham da Alemanha para preparar os lotes. Essas empresas tinham parceria com o governo brasileiro. A Sociedade Colonizadora Hanseática foi uma delas – diz o historiador e pesquisador Dioney Sartor, responsável pelo Arquivo Público Municipal de Ibirama.


Aonde o branco chegou, chegaram também as cercas. As florestas do Vale do Itajaí deram lugar às cidades, às estradas, às fazendas dos colonos e aos empreendimentos madeireiros. Tendo que disputar a caça, o palmito e o pinhão com os novos moradores, os xoklengues assaltavam as propriedades e matavam o gado, quando não os próprios colonos.


– Na Europa se fazia a propaganda de que no Brasil havia terra fértil, boa para plantar e criar gado. Com os ataques, as empresas passaram a reportar o que acontecia para os governos alemão e italiano, que pressionavam o governo brasileiro: “Se vocês querem ocupar a terra, é preciso tomar providências” – conta Hoerhann.


A providência foi afugentar. Os responsáveis pela província e as colonizadoras contratavam patrulhas para percorrer a mata e espantar os indígenas. Em 1880, o governo provincial relatava com a maior simplicidade que “para afugentar os índios, tomaria as medidas de costume: recorrer aos batedores de mato”, conforme narra o antropólogo Coelho dos Santos. O Jornal do Commercio, de Florianópolis, publicou em várias oca­siões pedidos de dinheiro para pagamento a vaqueiros para “que batam as matas e afugentem os silvícolas”.


MAIS DE MIL ASSASSINADOS EM DEFESA DOS COLONOS


As tropas de bugreiros eram formadas por oito a 15 homens. Quase todos caboclos, geralmente parentes, e com muito conhecimento do território. O mais célebre deles foi Martinho Marcelino de Jesus, o Martinho Bugreiro, nascido em Bom Retiro em 1876. Ele vivia da criação de gado, mas no fundo era um aventureiro:


– Além disso era uma atividade que dava prestígio – ressalta Hoerhann.


As histórias sobre Martinho Bugreiro viraram lenda. Uma delas é sobre a vez que foi chamado para prestar esclarecimentos a respeito do assassinato de 100 indígenas. Ele mesmo respondeu: “Deve haver algum engano. Em defesa dos colonos e de suas propriedades eu matei mais de mil índios”.


MITO DA SELVAGERIA DESFEITO EM CONGRESSO

Quando não mortas, as crianças eram capturadas pelos bugreiros, exibidas nas cidades e encaminhadas para orfanatos e conventos. Uma delas foi adotada em Blumenau pelo médico alemão Hugo Gensh. Batizada Maria Korikrã, a menina de nove anos foi educada nas línguas alemã, francesa e português e sabia tocar piano.

A experiência como pai de uma criança indígena foi narrada por Gensh numa monografia. O que o médico queria era desfazer o mito da selvageria e provar que ela era uma pessoa normal como qualquer outra.


O texto foi apresentado num congresso americanista em 1908 e deixou a comunidade científica chocada. Também andava por Santa Catarina na época o aventureiro e etnógrafo checo Albert Vojtech Fric, que terminou por revelar ao resto do mundo as atrocidades dos bugreiros.


A denúncia de Fric causou alvoroço. Envergonhado, o Brasil criou finalmente o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em 1910. Na teoria, era uma tentativa de reduzir os conflitos e nacionalizar as comunidades existentes. Na prática, serviu para garantir a segurança dos colonos.


– Os conflitos se davam com os xoklengues porque eles ainda viviam dentro de suas tradições. Os guaranis e os caingangues já estavam integrados à sociedade. Não dava mais para continuar matando. Havia pessoas aqui para contar lá fora. O Brasil ficou numa cilada: como proteger agora os índios se em 300 anos não tinha conseguido se aproximar deles? – afirma Hoerhann.


Os primeiros funcionários do SPI em Santa Catarina foram militares e por aqui não tiveram sucesso. Dois anos depois chegaram civis. Um deles foi o gaúcho Raul Abbot, que já tinha experiência de contato com os caingangues. Mas ele desistiu, primeiro porque não conseguia encontrar os índios e, em segundo lugar, porque tinha medo de ir para o mato.


É aí que começa a história do herói da pacificação e, ao mesmo tempo, o responsável pela gradual extinção de saberes tradicionais dos indígenas: Eduardo de Lima e Silva Hoerhann.
Fontes: Do Site do Nós

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